Bolívia

Depois de uma noite mal dormida no ônibus que nos levou de São Paulo a Campo Grande e os cochilos no trem até Corumbá, finalmente encontramos uma pousada para comer algo que não fosse sanduíche, trocar a roupa pela primeira vez em cinco dias, curtir o sono e recuperar as forças para a próxima etapa da viagem, a Bolívia.

No dia seguinte, buscamos informações sobre o meio de transporte. Logo descartamos a locomotiva que saía de Corumbá, que oferecia conforto, segurança e rapidez, mas tinha um defeito: não cabia no nosso bolso. A máxima era economizar, porque ainda tinha muito chão pela frente.

A solução era atravessar a fronteira e, em Puerto Suarez, ver se conseguíamos comprar passagem para Santa Cruz de la Sierra. Obtido o visto de entrada no Consulado boliviano em Corumbá, nos encaminhamos para o posto de Fronteira apresentando nossos passaportes, que à época trazia um carimbo da Polícia Federal com os dizeres: "Não é válido para Cuba". Assim obtivemos os primeiros registros oficiais de saída do Brasil e de entrada na Bolívia, como turista, marcando a fase internacional da viagem. Era 9 de janeiro de 1976.

No corre-corre paramos para comer alguma coisa, e o Zoca, um colega do curso de engenharia, se adiantou e bradou para o atendente do bar "tengo hombre!", para espanto dos presentes. Naturalmente, ele queria dizer "tengo hambre", ou seja, tenho fome, e amargou a primeira lição do aprendizado do novo idioma, sobre a diferença que faz uma única vogal, trocada, e posta no lugar errado.

Com esforço, pois o trem já estava em movimento, conseguimos subir no vagão, e descobrir que seriam 27 longas horas. Acomodados como a situação permitia, pois não havia mais assentos disponíveis, durante o dia nos distraímos com a paisagem, montanhas e vales, e também observando o comportamento, o tipo físico, as características daquele povo diferente do que conhecíamos.

A distância de 660 km, e pouco mais de duzentos metros de altitude entre as duas cidades, não aparentavam ser obstáculo tão  intransponível, mas na velha locomotiva que arrastava os vagões, ainda com inscrições que revelavam ter sido aposentados da rede ferroviária federal brasileira, tudo era muito difícil.

De tão lento, em certos momentos, passageiros pulavam do trem e corriam para colher frutas em árvores próximas, voltando em seguida para seus lugares. Mas a maior dificuldade nos reservava a noite. Como dormir? 

Na escada, entre dois vagões, onde permaneci sentado à maior parte do trajeto, não seria possível, pois correria o risco de cair. Alguns, subiam nos vagões, onde se amarravam - literalmente, ali poderiam esticar o corpo e apesar do frio, dormir. Outros, como eu, foram para o vagão de carga, apinhado de gente que se escorava uns nos outros. Por outro lado, o calor nos fazia molhar o corpo. Em carta a família, falei em angústia e desespero. Apesar do corpo molhado não tinha como sair pois teria que pisar nas pessoas. Pra completar, a polícia do ditador Hugo Banzer, sempre amedrontava nas suas abordagens, sobretudo na madrugada.

Depois do suplício, finalmente, chegamos a Santa Cruz com frio, fome e sono, e precisávamos descansar antes de seguir adiante. 

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