Casos a bordo



Já embarcado no voo de Bogotá a Santo Domingo, procurava o que ler para passar o tempo, que aquela altura já estava pesando nos meus olhos, ombros... Não propriamente o tempo, mas o fato de acompanhar sua passagem, hora por hora, sem o sono suficiente para permitir um pouco de alienação da sua marcha inexorável. Do tempo, claro.

Pois, de repente, sonolento, minha atenção se volta para as orientações de um dos comissários para os passageiros sentados ao lado das portas de emergência, nas poltronas à minha frente.
 Sequer havíamos decolado e ele alerta: "quando o chefe dos comissários gritar três vezes EVACUAR, EVACUAR, EVACUAR, os senhores verificam se as condições externas da aeronave são adequadas, se não, não abram estas portas e sigam para as saídas nos fundos do avião"!!!!!!


Nunca vi algo assim. Parecia um filme de terror. O menino do meu lado já estava com medo, havia trocado de lugar com o pai, que se mudou para a janela, pareceu atônito.
 Mas não terminou aí.


O avião decolou, aquela tensão normal, mas logo chegou a altitude desejada. De fato sacolejava, não se poderia dizer que era uma viagem tranquila, daquelas que as vezes você esquece que está em vôo, tal a elegância com que o avião corta os ares. Mas de início, nuvens, depois, não mais, era só o vento forte, e a turbulência.


Eis que o silêncio nervoso, de expectativa, é interrompido pelo serviço de auto-falantes. Parecia ser um comunicado urgente, pela assertividade da fala e também porque a turbulência havia aumentado, ainda que dentro da normalidade.


"Atenção!", dizia, "nos banheiros não tem máscara de oxigênio, portanto, logo que sejam dados os avisos de uso das máscaras, saiam imediatamente dos banheiros e voltem para as suas poltronas".
É brincadeira? Só consigo me lembrar do cronista: a piada pronta. No caso, o terror pronto, servido a quente e escorrendo...


Definitivamente foge ao padrão de qualquer orientação de segurança de vôo que já tenha escutado.


PRÉ-DOMINICANAS

Ao invés de ler, resolvi escrever. O tempo está fluindo bem.
Lembrei-me de duas outras situações curiosas que já enfrentei em viagens de avião. A primeira não faz muito tempo e recordei porque já estávamos em procedimento de descida num voo impecável ainda que longo, quase onze horas ininterruptas.

A única dificuldade era compreender as orientações, primeiro em alemão, pois o vôo era da Lufthansa, depois em coreano, pois a maioria dos passageiros era daquele país asiático, e por último em inglês, com sotaque alemão, mas tudo bem. Enquanto se tratava de orientações padrão, estava tranquilo. Outras conversações não eram tão fáceis, mas não tinham implicações  tão graves. Para as refeições, por exemplo, o menu estava escrito, o risco era comer algo mais apimentado, coisas assim.


Mas aquele aviso, já fase final da viagem, só foi suficientemente claro porque mencionava três países, Libéria, Serra Leoa e Guiné, seguido do termo "quarentene". Naqueles dias, o mundo estava tenso com um surto de Ebola na África Ocidental, que ao final apresntou uma taxa de letalidade de 40% dos quase 30 mil infectados. Assim, a situação era tensa. Quem viesse desses países já estava com o destino traçado, mas, e os demais? Já pensou?  No total já eram trinta horas de viagem até ali, e se houvesse manifestações da doença nos eventuais passageiros?


Felizmente nada nos aconteceu. Talvez se fosse algumas semanas depois, quando uma enfermeira americana viajou de avião já contaminada, aí sim, teria sido complicado. Que beleza, uma quarentena na Coreia do Sul, e depois mais trinta horas de vôo de volta. Sim, porque os motivos que nos levaram até Seul já não teriam mais razão de ser, ainda que estivéssemos, provavelmente, célebres.

Celebridade de uma eventual pandemia de um vírus transferido a humanos por um churrasco de morcego.
Hasta lá vista baby.


PORTUGUESES

Entusiasmado com os relatos...  Ai jisus, quanta turbulência ! A terceira situação que mencionei foi em Portugal, e cabe na série de "Casos a bordo".

Neste momento, aqui no vôo para Santo Domingo, irrompe uma voz feminina para dizer que atravessamos alguma turbulência mas que em nada afetou a segurança do vôo...  Era a Capitã.... Perigo constante.

Pois bem, voltemos, ao vôo da TAP. Sairíamos de Portugal num voo direto para Salvador de Bahia, que maravilha, não precisa ir a São Paulo ou Rio de Janeiro. Embarque concluído sem anormalidades, sento na minha poltrona de primeira classe - dias de bonança.

Tudo normal.  Até que uma senhora é conduzida à primeira classe, pois, tendo havido um over book na classe econômica, e havendo vagas no serviço especial, foi convidada para desfrutar dos prazeres das poltronas confortáveis que se inclinam até transformar-se em um leito, afora a bebida, a comida e o atendimento gentil.

Ela, no entanto, resistia. Nervosa, sentindo-se como se estivesse cometendo algum erro, dizia ter comprado a passagem, e mostrava aos comissários. Enquanto tentavam acalmá-la, outra ocorrência se apresentava. Parece que tudo acontecia ali, na primeira classe, lá tudo se resolvia. Sentia-me no gargarejo do teatro, acompanhando o espetáculo. Talvez, mais adequado seria dizer que assistia a tudo de camarote.

Desta feita um senhor, que só depois pude entender, estava atrasando a saída do vôo. Deram-lhe um calmante, mas não parecia resolver. Ele estava na classe executiva, mas, como disse, tudo acontecia na primeira classe. As comissárias, ou aeromoças como eram chamadas tempos atrás, provavelmente no tempo em que elas ingressaram na TAP, iam e voltavam, mas não conseguiam resolver o problema. Que era tão somente, o fechamento das portas. Simples assim.

O cidadão que se dizia ser funcionário de uma empresa de aviação, não se sentia confortável viajando.... de avião. Imaginem, claustrofobia.

Aqui, no vôo para Santo Domingo,  o negócio complicou. Faz tempo que não enfrento uma turbulência dessas. Agora entendi a ordem da Capitã para que a tripulação voltasse a seus postos. Valei-me meu padin padre Cícero. Hoje é o meu aniversário, livrai-nos do mal, amém.

Vai ficando feio, a senhora do meu lado não suporta a pressão e deixa exalar de algum ponto das suas entranhas um cheiro diferente. Seguro a respiração, olho pra ela, mas ela disfarça. Disfarço eu também. O avião se sacudindo e eu esboço um sorriso de tranquilidade, na ideia de que tranquilizando os outros, também eu me tranquilizo. Que difícil. Só Freud.

Vai pousar. Ufa! finalmente. Acho que ainda dá pra terminar a história da TAP.

Não deu pra terminar, mas chegamos ao solo, sãos e salvos, pois que senão não estaria enviando esta mensagem.

Pois o cidadão do vôo que saía de Lisboa pedia que a tripulação não fechasse as portas. Encerro com as palavras da comissária lusitana, que de forma cristalina lhe dizia "mas o senhor há de compreender que se não fecharmos a porta do avião não poderemos descolar".

Ora pois.


EUROPA, BAHIA

Em meados da década de noventa dos novecentos, estreei em viagens para a Europa. A convite do meu amigo Balbino, que integrava a Confederação dos Metalúrgicos do Brasil, vinculado à CUT, fomos participar de um Congresso Mundial de Sindicatos Metalúrgicos vinculados à indústria automobilística, organizado pela Confederação de Metalúrgicos da CGT francesa.

Eu fazia doutorado e a temática do encontro estava diretamente relacionada aos meus estudos. Juntei uns trocados, pedi ajuda de alguns sindicatos, pois a passagem era bem cara. Enfim, partimos de Salvador e fomos até o Rio de Janeiro onde outro vôo da Varig nos levaria até Paris.

Beleza!

Embarcamos no Rio de Janeiro e, prontamente, me aboletei logo nas primeiras poltronas. Conferi a passagem, pronto, é aqui mesmo. Balbino passou direto e foi sentar lá pra o fundo, em seguida volta e diz: "rapaz, não é ai não, é lá atrás". Mostrei o bilhete e insisti, "o meu é aqui".

Poltrona confortável, viagem pra Europa é outra coisa, pensei. Logo uma aeromoça me ofereceu uma necessaire - uma bolsinha cheia de apetrechos para a viagem e perguntou se queria uma bebida, uma champanhe. O negócio estava ficando bom e melhorando. Uma beldade, nada mais nada menos que a Shirley Mallman - uma modelo brasileira de carreira internacional, sentou-se na poltrona do lado, no mesmo corredor. Vixe Maria!

Nisto chega uma senhora e, confusa sobre onde sentar, esclareci que ali era o meu lugar e mostrei-lhe o bilhete comparando com a numeração indicada acima. Ela saiu meio sem jeito, ficou por ali, e em seguida se dirigiu aos comissários de bordo que estavam um tanto ocupados com os preparativos da travessia do Atlântico.

Não passou muito tempo, veio uma comissária pedindo para ver o bilhete. Já estava me irritando com aquilo. Com toda paciência entreguei-lhe o comprovante, e ela voltou para comparar os bilhetes, com o da senhora que insistia em querer o meu lugar, .

Pensei que já estava tudo resolvido. Lá vem de novo. Esse avião não vai decolar não é? Já ia perguntando, quando ela pediu para ver o outro bilhete. Como assim? Perguntei. Então veio a informação tão esclarecedora quanto humilhante: "é que esse ticket é do trecho Salvador-Rio!".
Coço os bolsos, entrego o papel, e a realidade cai sobre a minha ingenuidade, esmagando-a. Meu lugar, esclareceu-me, era na classe econômica e ali era a primeira classe.

Bem que Balbino avisou.

Reposta à sua condição, posto e poltrona, a senhora, antes acanhada, olhou-me com um descaso enorme: "classe econômica, hum". Eu quase escutei, apesar dela não ter aberto a boca. Dei um sorriso amarelo para a musa que estava ao meu lado e saí.

Conformado, pois havia uma poltrona vazia na Business Class para a qual fui remanejado pela aeromoça. Começava a me acomodar quando ela volta: "o Sr. pode me devolver a necessaire?"
Que dureza, do céu ao inferno e o avião sequer havia levantado vôo.

De todo modo a viagem compensou enormemente a desconcertante situação inicial.


É O FIM DO MUNDO



Viajar de avião não chega a ser sempre uma atividade prazeirosa, pra mim é antes de tudo uma necessidade. Digamos que não tenho vocação para passarinho, e não é nem pelo risco da pedrada, é porque tenho medo. Medo, sim, por que não? É o meio de transporte mais seguro do mundo, etcetera, etcetera, mas não tem como não rolar uma tensão.
 De tanto ter medo e de tanto viajar de avião, no entanto, desenvolvi minhas teses. A base do raciocínio é o seguinte: se cair, o que eu posso fazer?

Nada. O problema se desloca então para a decisão de viajar ou não, quando a necessidade ou vontade de estar do outro lado da trajetória é mais forte do que a resistência do ar...
  Assim, lá vou eu para o Japão, para defender um pleito de realizar na Bahia um  campeonato mundial de Judô. A apresentação seria feita em reunião do Conselho da Federação Internacional de Judô, que estaria reunida na capital japonesa por ocasião de um outro torneio daquela modalidade.
  A viagem foi feita em três etapas, com aterragens, como dizem os portugueses, em Lisboa, Paris e finalmente Tóquio.

Oito horas de Salvador a Lisboa, pela TAP, conexão até Paris na mesma companhia e, no último trecho, um voo de doze horas pela Air France.
Era tempo de vacas magras. O governo da Bahia, comprou passagens na classe econômica. O avião era dos grandes, bem grandes, três assentos de cada lado da fuselagem e cinco no meio, com dois corredores. A Air France não brincou em serviço, a distância entre as fileiras das poltronas era a conta certa, faltando pouco para meus joelhos encostarem na poltrona da frente. Com o cinto amarrado!


Pra completar, me deram um assento da janela, que eu prefiro somente quando a outra opção é o assento do meio. Gosto mesmo é de assento de corredor, mesmo com o risco de ser atingido pelo carrinho de comida, bolsas ou mochilas de passageiros que não estão nem aí se lhe acertam no rosto.

Enfim, prefiro, justamente pra não incomodar os outros nas eventuais necessidades de ir ao banheiro ou esticar um pouco, e, especial em viagens de doze horas.
  Só pensava em meu cóccix fissurado e o incômodo de ficar sentado tanto tempo. Mas, lá vou eu na janela.
  No corredor, o sujeito já chegou bêbado - cada um tem sua estratégia. Dormiu do início ao fim do trajeto, sequer percebeu que serviam refeições, por exemplo.

Desse modo, ele bloqueava a minha fileira. A situação não seria tão grave, não fosse o mal estar que a minha companheira de viagem foi acometida, e depois de duas aterragens e três descolagens ela não suportou. Há várias formas figuradas de expressar o ocorrido: chamou Raul, chamou Hugo, mas o resultado foi só um: pôs os bofes pra fora e foi aquela situação.
  Agora imaginem, na ponta direita um bêbado desabado sobre a mesinha de refeições, no meio, a colega, completamente grogue e indisposta - melhor não mexer.

Foram doze horas de viagem, três refeições, dois filmes, e não fiquei nem sabendo como era a cara do banheiro, nem muito menos fiz meus desejados e necessários alongamentos. A coluna, um bagaço.
Soltas as amarras, retirados os obstáculos com o desembarque, corri para o banheiro do avião mesmo. Quando saí, uma comissária francesa me olhava atravessado, no mínimo achando que estava aprontando alguma. Mas, já era tarde, o sentimento de alívio era o que me recompensava naquele momento.

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